Fitzcarraldo e a Imagem Pura

Fitzcarraldo e a Imagem Pura

No maravilhoso documentário Tokyo Ga (1985) há uma cena em que o diretor Wim Wenders se encontra com seu amigo, o também cineasta Werner Herzog, que passava pela cidade de Tóquio. Os dois conversam brevemente sobre o fazer cinematográfico, quando Herzog fala sobre a “imagem pura” e a dificuldade em adquiri-la. Assisti esta cena antes de ter visto Fitzcarraldo, filme dirigido por Herzog em 1982. O discurso em Tokyo Ga fez todo sentido e acabou se encaixando como um resumo das ideias de Herzog e uma potência na experiência de seus filmes. Seu grande dilema aparece naquelas falas e se materializa em Fitzcarraldo. A mão humana modela a natureza explorando a sua pureza. Existem prédios e mais prédios, grandes metrópoles como a Tóquio retratada por Wenders, veículos, buzinas, mecanismos e autômatos, mas poucos são os que ainda dedicam tempo para notar a imensidão do mundo.

Fitzcarraldo conta a história do personagem título, interpretado pelo insano e genial Klaus Kinski, que sonha em levantar um grande e luxuoso teatro no meio da poderosa e intransigente floresta amazônica, onde seriam apresentadas óperas monumentais. Para financiar seu estranho desejo, ele acaba comprando um barco e a ideia de explorar a borracha em uma mata praticamente inexplorável para enriquecer. É claro que esse desafio não significa quase nada à audácia de Fitzcarraldo que já na primeira cena mostra sua persistência para conseguir o que quer. Este é um homem que está disposto a tudo por seu objetivo, assim como parece ser o cineasta por trás da imagem.

Ao final de sua fala em Tokyo Ga, Herzog diz que faria de tudo pela tal imagem pura, até, por exemplo, uma viagem espacial para Marte e subir uma montanha de oito mil metros. Ele inclusive reivindica ao amigo que é isso que se deve fazer no Cinema: buscar a pureza, o que também chama de “imagem transparente”. Em Fitzcarraldo, esse conceito herzoguiano é extremo. A perseverança do personagem é a mesma de seu autor, confundindo-os. A diferença está na moralidade: se o personagem faz tudo por sua ganância, Herzog tem como defesa a Arte. O diretor mostra o quanto o ser humano é absurdo e opressor. A ópera, que é representada como uma cultura da elite, da qual Fitzcarraldo não faz parte, é o símbolo da colonização. Seu grande desejo é ganhar o status de poder ao entrar naquele mundo. O cenário amazônico é a imagem pura corrompida. Sua transparência vai se tornando opaca.

As cenas colocam tudo em risco: Herzog faz um realismo assustador. são índios reais, a mata derrubada, barco verdadeiro sobre uma correnteza feroz. Como o próprio cineasta disse em uma entrevista, seu interesse é fazer filmes que nascem da dor. Surge um questionamento ao espectador: o quanto é permitido na Arte? É com isso que temos que lidar ao final da sessão, principalmente se você for curioso ao ponto de ir atrás de “Burden of Dreams“, documentário que mostra o conturbado bastidor da filmagem de Fitzcarraldo. O que deve ser feito pela imagem pura? Herzog já hipnotizou atores em Coração de Cristal (1976) e colocou outros sobre uma jangada nada segura rio adentro em Aguirre (1972). Em Fitzcarraldo ele explora os indígenas com trabalho análogo a escravidão, coloca seus atores no topo de uma estrutura de bambu e em um barco à deriva na correnteza. Talvez o fato mais curioso dessa produção seja a relação de Herzog com Kinski. O ator já era famoso por seu temperamento, mas nesse filme os indígenas chegaram a se oferecer para matar Kinski, tamanha a confusão que ele causava no set. É possível conhecer mais do conturbado dueto em um excelente documentário do próprio Herzog: Meu Melhor Inimigo (1999).

A jornada dentro e fora do filme é o reflexo da condição em que nos colocamos enquanto raça humana, colonizadores da natureza. Todo processo de colonização é violento e, portanto, não haverá concordância entre as partes. Uma sempre será explorada para o benefício da outra. A sobrevivência da humanidade está condicionada a sua interferência na imagem pura. Essa é a dor inerente à existência e a grande questão do cinema de Herzog. Fazer filmes também é um ato doloroso e colonizador. Essa consciência está presente em Fitzcarraldo, ele próprio é a representação do absurdo da vida. O que o ser humano é capaz apenas para satisfazer sua ganância?

A exploração começa nos povos indígenas. O até então temido povoado se curva à presença de Fitzcarraldo, acreditando no cumprimento de uma profecia que anunciava a chegada de um deus loiro. É claro que ele não faz nada para evitar o mal entendido e logo os coloca a seu serviço. O objetivo é atravessar um barco pelo meio da floresta e acessar o seringal. Com um esforço descomunal, que também envolve a derrubada de uma grande área de mata, eles conseguem. O protagonista é como um “maestro” coordenando o trabalho indígena escravo, é a figura do europeu colonizador na América. Mas, a grande ironia colocada por Herzog em seu ato final é que, em contraposição com todo o trabalho “impossível” de atravessamento do barco pela selva, o sonho é arruinado por uma simples bebedeira: a embarcação acaba lançada para uma correnteza e é quase totalmente destruída. Os indígenas fogem; a riqueza não é conquistada. Todo esforço e violência foram em vão.

Mesmo assim, o colonizador precisa dar um jeito de prevalecer na situação. Em sua ação final de fracasso ele monta uma pequena ópera em seu barco cambaleante. Terminamos o filme com Fitzcarraldo se deleitando com o que acabara de fazer, como se tivesse contornado a derrota em um grande ato de prazer. Mas a verdade é que o homem perdeu a luta contra a natureza (e essa é a visão mais sólida da carreira de Herzog). Mal sabe Fitzcarraldo o quanto a cena não mostra só a sua banalidade, mas também a nossa enquanto seres humanos sedentos pelo poder. Quanto mais poluímos a pureza e a transparência da imagem, mais revelamos a nossa fraqueza.

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