Zé do Caixão e o Despertar da Besta | 1969

Zé do Caixão e o Despertar da Besta | 1969

São notáveis as dificuldades em se fazer Cinema no Brasil. A falta de recursos e incentivos é vista há muitos anos, fazendo com que o público brasileiro consuma muito mais as obras dos colonizadores europeus e americanos do que sua produção própria. Os cineastas daqui travam uma batalha desleal contra o mercado cinematográfico, entretanto, isso nunca foi sinônimo de baixa qualidade. Pelo contrário, o Cinema brasileiro é um dos mais ricos do mundo! Foi nesse contexto que José Mojica Marins trabalhou em praticamente toda sua filmografia. O famoso Zé do Caixão é um símbolo de resistência de nossa arte, um mito para além de todas as limitações impostas, não só financeiramente, mas também pelas garras da ditadura militar. O cineasta abre espaço e assume uma posição única no gênero do horror, um reconhecimento infelizmente tardio.

Assinando a direção de mais de 40 filmes, Mojica realizou algumas obras-primas do terror, amparadas por seu personagem de maior sucesso, o funerário Zé do Caixão. A capa preta, a cartola e as unhas grandes foram as marcas que o diretor levou por toda sua vida, fundindo-se com a ficção. Zé aparece pela primeira vez em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), a abertura de uma trilogia completada por Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) e Encarnação do Demônio (2008). Parte de sua carreira também foi trilhada no cinema pornográfico, fazendo com que Mojica caísse ainda mais no esquecimento artístico em sua época. Quem de fato o reconheceu como precursor e um dos maiores cineastas brasileiros foram Glauber Rocha, Luís Sérgio Person e Carlos Reichenbach. Na biografia de Mojica Marins, André Barcinski e Ivan Finotti contam a lenda sobre o momento em que Glauber é flagrado na sala de cinema aos berros: “gênio! Puta que pariu, esse cara é um gênio!”. Havia acabado de assistir À Meia-Noite Levarei Sua Alma no cinema Roxy, em Copacabana.

A genialidade de que fala Glauber pode ser sintetizada no filme O Despertar da Besta (1969), também conhecido como Ritual dos Sádicos. Zé do Caixão está lá, mas, diferente da referida trilogia, numa função de mediador, de relator da depravação, como o personagem que percebe e denuncia a hipocrisia da sociedade brasileira. Mas também está em uma relação metalinguística com a realidade: Zé do Caixão é José Mojica Marins, cineasta maldito que também está ali denunciando aqueles que o julgam como o disseminador da maldade e depravador da pureza humana. O terror proposto por Mojica é, na verdade, a enunciação de sua onisciência: ele sabe que as convenções escondem nossa obscuridade. As entranhas de um inconsciente cheio de desejos e fetiches é exposto por Zé do Caixão. É como se nada pudesse permanecer escondido diante dele.

Na cena de abertura, Zé do Caixão prenuncia a estranheza do espectador: aquele que o julga estranho é muito mais bizarro do que o filme que assiste. A partir daí, O Despertar da Besta é o desvelamento da depravação, do instinto humano-bestial. Por mais que já tenha afirmado em entrevista que não teve acesso às obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, Mojica é um nietzschiano. A constatação niilista de que o ser humano caiu em um limbo de negação de si é o que move a criação do diretor. O Homem sucumbiu a um mundo de moralismo hipócrita, dos julgamentos que apontam dedos e gritam sobre os erros dos outros, mas sem nunca olhar para os seus.

O estranho mundo de Zé do Caixão abre suas portas. Uma moça é observada por vários homens sedentos enquanto aplica droga em seu pé. Seu corpo é exposto para a realização do fetiche daqueles rostos animalescos que tomam conta da tela, com olhos esbugalhados, quase babam para chegar ao clímax. A satisfação em ver a moça se despindo não os completa porque o desejo deles é mais insano: querem vê-la urinando em um penico. Há de se destacar o trabalho de som que, desde os créditos iniciais, mescla grunhidos, gritos, uivos e urros com a música jovemguardista de De Kalafe, anunciando o fim da paz, a guerra de todos contra todos.

Logo descobrimos que o ato, na verdade, é a narração de uma outra pessoa, o psiquiatra Dr. Sérgio, entrevistado em um programa de TV em um cenário escuro onde se vê apenas a silhueta de quem fala. O apresentador comenta que a história narrada pelo doutor parece muito mais algo saído de um filme de Zé do Caixão, e não da realidade. Mais uma vez se nega a imoralidade. O psiquiatra insiste e recorre a uma outra crônica depravada: homens aliciam uma jovem na saída da escola e fazem um estupro coletivo. A violência não é explícita, mas as alegorias usadas por Mojica tornam a cena insuportável. Novamente o som é um dos protagonistas. Os movimentos são orquestrados como um ritual macabro de possessão do corpo da menina. O tóxico (leia-se “tóchico”, como no filme) é apresentado para a jovem; todos estão alucinados.

No programa de TV, comentaristas tentam justificar o ato afirmando que aquela foi uma ação isolada, levada pela delinquência juvenil e pelo uso de drogas, algo pelo qual não devem se preocupar muito. Um deles diz que “essa juventude está perdida”, se isentando de qualquer culpa. Uma silhueta se destaca naquele breu porque é facilmente reconhecida: José Mojica Marins toma nota do debate. Aos poucos o espectador vai desenrolando o que se passa naquele ambiente paralelo. O personagem central é Dr. Sérgio e um experimento que realizou sobre a depravação e sua relação com os tóxicos.  Em certo momento alguém se volta para Mojica e pergunta qual era sua função ali. Ele responde que não sabe, mas demonstra estar sempre atento à conversa que continua com mais exemplos de atos indignos e imorais.

Mojica cria um paralelo entre um “mundo real” e um “mundo fictício”. O aparato metalinguístico construído por ele e por seu célebre roteirista e recorrente parceiro, Rubens Lucchetti, serve para questionar sua própria função como artista e a representação de sua obra. Enquanto a mídia tenta julgá-lo como uma afronta aos bons costumes, Mojica anota suas considerações como se estivesse estudando a hipocrisia daqueles que o apontam. Quem seria Zé do Caixão? É ele o personagem marginal censurado nas telas. É aquele que desafia a natureza humana deixando suas unhas crescerem. É quem vê o mundo como ele realmente é por baixo dos panos. Um Zaratustra do cinema brasileiro?

Enquanto o psiquiatra defende seu experimento, Mojica continua ali sendo relacionado a tudo aquilo que há de mais depravado. O Dr. Sérgio, então, é questionado por seus métodos. Reunindo quatro viciados em tóxicos de quatro classes sociais diferentes, o cientista realiza um teste com LSD. Cada um dos voluntários passa por uma série de situações e assumem que a mais incômoda foi ter assistido um filme de Zé do Caixão. O doutor chega a seu objeto de estudo que encerraria a análise com a droga: o próprio Zé do Caixão. Usando um poster do personagem, ele induz seus pacientes a injetarem a droga e delirarem dentro do mundo criado por Mojica.

O pesadelo dos drogados, em oposição à “vida real” em preto e branco, é colorido. Os delírios são o auge de O Despertar da Besta. Zé do Caixão é convocado ao filme e sua função é revelar àquelas quatro pessoas um mundo podre. Eles são obrigados a verem seus próprios fetiches à mostra. Este último ato é um elixir para a montagem e a direção de arte, lembrando as cenas mais surreais de Buñuel à Lynch. Despertando, mas ainda sonolentos, os viciados balbuciam que reconhecem a bestialidade daquilo que lhes foi mostrado por Zé do Caixão durante o delírio. Dr. Sérgio chega à conclusão de sua tese.

No debate televisivo os comentaristas repreendem o experimento do cientista, afirmando ser antiético o uso de tóxicos para comprovar seu resultado. É quando nos é revelada a grande ironia de Mojica. O psiquiatra conta que em nenhum momento utilizou LSD com seus pacientes, mas sim água destilada como efeito placebo. Então, conclui que não são as drogas causadoras da depravação humana, mas uma sugestão natural que os inclina para atos desprezíveis. Mojica permanece neutro, em silêncio à mesa do programa de TV. Fecha-se o questionamento sobre a função do controverso cineasta. A grande piada contra a censura foi feita: O Despertar da Besta é a isenção de Mojica, ou, pelo menos, sua tentativa de dizer que os filmes são feitos também por aqueles que o consomem, assim como a entrega aos instintos bestiais relatados pelo psiquiatra.

Por que Glauber viu em Mojica a genialidade do cinema brasileiro? Talvez por sua marginalidade, por sua vontade de fazer Cinema além da opressão, na raça, na transgressão do gênero, no grito, como o próprio Glauber Rocha. Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça, alguns rolos de filme virgem, atores e uma equipe competente transformaram o Cinema Brasileiro e criaram o mito de Zé do Caixão, personagem polêmico, imoral, perverso: a representação do Homem (?). No fim, Mojica caminha pelas ruas e ri de sua piada. A depravação está ali na esquina, ele é testemunha.

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