Guapo’Y | 2023 | 17º Cine BH

Guapo’Y | 2023 | 17º Cine BH

Por Francisco Vidal

A síntese estética de Guapo’Y, novo longa-metragem da cineasta Sofía Paoli Thorne, ocorre de maneira belíssima em seus minutos finais. Neste momento, há uma montagem entre o ambiente natural habitado pelo filme, com o uso de close-ups e planos detalhes de plantas, flores e de seu solo, intercalados por raccords com a superfície da pele de sua protagonista, Celsa Ramirez Rodas, sobrevivente de torturas feitas durante o período da ditadura de Alfredo Stroessner. É criado um paralelo rítmico entre as linhas históricas de suas cicatrizes, habitadas pelos legado traumático de seu país, com a marca do tempo acumulada por objetos da natureza ao redor.

O longa é estruturado a partir da rotina de Celsa em seu lar, da forma como ela diariamente se utiliza de elementos vindos de seu jardim para criar uma medicina caseira particular, seja pelo uso de folhas de alecrim para ajudar em sua memória, ou pela maneira que ela coloca essas folhas em seu corpo ao redor de suas cicatrizes. O aspecto físico e material característico da jardinagem é bastante enfatizado, o modo como suas mãos penetram, tiram e recompõe elementos do solo para servir como uma espécie inventiva de cura, capturado de forma íntima e imersiva pela câmera, ao mesmo tempo em que o longa realiza o movimento de ouvir relatos orais da protagonista junto de sua família. 

Guapo’Y traça uma cartografia histórica ampla do legado da ditadura paraguaia através de um formato intimista e caseiro: nós nunca saímos do lar de Celsa, nunca vemos o exterior de sua cidade ou sua rua, o seu ambiente doméstico e seu jardim se tornam o único universo de referência ao espectador. Essa característica faz com que a presença de Celsa e seus gestos durante os relatos que retratam momentos de sua vida, ganham um peso que dispensa qualquer tipo de suplemento visual, apenas ouvir a coragem que essa mulher tem ao se abrir perante outros já é o suficiente. A força principal do filme reside no quanto é  depurada e simples sua abordagem.

O tema central de Guapo’Y é como a memória pessoal e coletiva de um indivíduo e de seu país se encontram inseparáveis. Não há diferença alguma entre a vida pessoal de Celsa e o processo de construção e desconstrução do Paraguai durante a ditadura. Quanto mais pessoal e específico fica cada relato feito por Celsa, mas político o filme se torna. Ela é uma mulher que carrega dentro de si um país, uma comunidade, um processo de subjetivação que vai do micro (sua casa, sua presença, seu corpo, sua rotina diária) ao macro (toda a trajetória que teve com seu marido como militante comunista, sua prisão no campo de concentração junto de seus companheiros). Os momentos mais impactantes do filme são os em que somos capazes de imaginar relações, criações de comunidades, apenas pelo simples ato de ver e ouvir Celsa e de confiar em seu relato.  

A forma como a natureza é capaz, assim como o corpo humano, de carregar em seu interior todo o legado de um país é o que leva ao título do filme.  Guapo’Y  foi uma árvore do campo de concentração paraguaio de Emboscada, local que servia como ponto de encontro de sua protagonista com seus companheiros militantes, ao redor dela eles realizavam encontros, trocavam ideias, aproveitavam momentos de lazer, e se organizavam em resistência contra o regime de Stroessner. O símbolo que ela representava era de ser uma porta de entrada em que a memória de seus companheiros poderia ser escrita e gravada pela natureza, de como corpos humanos e não-humanos podem compartilhar uma memória política e social na superfície de seu ser.    

Guapo’Y venceu os prêmios do júri e da crítica no 17º Cine BH.

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