O misterioso mundo de De Olhos Bem Fechados

O misterioso mundo de De Olhos Bem Fechados

Por Matheus Oliveira

Kubrick recria o clima escorregadio do sonho e seu efeito após o despertar

Para realizar De Olhos Bem Fechados, Stanley Kubrick teve que comprar os direitos do livro Breve Romance de Sonho, do escritor austríaco Arthur Schnitzler. Contemporâneo e patrício de Sigmund Freud, Schnitzler foi para o pai da psicanálise relevante influência – e este, por sua vez, o foi para Kubrick, obcecado pelos mistérios do inconsciente.

A história do filme gira em torno de Bill (Tom Cruise) e de Alice (Nicole Kidman), casal de nova-iorquinos abastados. Ele é médico. Ela, desempregada (trabalhava em uma galeria de arte). O casal é próximo de figurões. Ziegler (Sidney Pollack) é um deles. Convida-os para uma festa em sua mansão. Eles comparecem. Após travar conversa com Nick (Todd Field, diretor de Tár), antigo colega da faculdade de medicina, agora pianista, Bill se engraça com duas moças elegantes (são modelos) que o convidam a acompanhá-las até o “fim do arco-íris” (referência à loja de fantasias Rainbow). Mas ele recusa o convite: não se sabe se pela intervenção do mordomo – que reporta-lhe uma emergência de Ziegler, fazendo-o se deslocar dali para onde está o anfitrião – ou por respeito à esposa e ao seu casamento. Em outro aposento da mansão, próximo de Bill, flerta com sua mulher um figurão húngaro. Este faz a ela convites com conotações sexuais, mas também ela os rejeita, pois, diz, “eu sou casada”. Atitudes distintas, mas reveladoras, que indicam o jeito dos cônjuges: Alice se importa mais do que o marido com a integridade do matrimônio. 

Tempos mais tarde, numa madrugada permeada por sensualidade, chapados de maconha sobre a cama (o alucinógeno como alegoria para viagem interior), conversando a respeito da festa na mansão, Alice encuca-se com um comentário de Bill: o de que acha compreensível que a desejem. Tal fala revela nela um ressentimento: seu marido, tão seguro de si, e mesmo consciente de que muitos homens a desejam, não sente ciúmes. Mas uma antiga história que ela conta envolvendo um marinheiro o transforma (“pensei que se ele me quisesse, mesmo que fosse só por uma noite, eu estaria pronta a abandonar tudo: você e Helena [a filha], todo o meu futuro“). Tal relato converte De Olhos Bem Fechados numa jornada interior de um marido cismado com sua esposa. 

Schnitzler, para Mário Sérgio Carvalho, repórter da Folha de S. Paulo, “explora o nó que liga o sexo e a morte para jogar uma luz sobre a mediocridade da vida conjugal burguesa e as razões da infidelidade“. Os temas elucidados pelo repórter com relação ao escritor são também caríssimos ao diretor. Aliás, se as palavras acima descrevem o livro, assim também o fazem com o filme: Kubrick sempre interessou-se pela vida conjugal e suas sutilezas (foi casado a vida toda com uma só mulher, Vivian, agora viúva). Um de seus maiores acertos foi o de ter escalado para o elenco Tom Cruise e Nicole Kidman, casados à época da produção do filme. Mas eles não eram qualquer casal: Cruise-Kidman era um dos mais badalados da Hollywood de então. Escalá-los para os papéis intimistas de Bill e de Alice fez a história soar como algo palpável e pessoalíssimo, afinal, é mais convincente ver um casal genuíno sendo desnudado – literal e metaforicamente – do que um fictício.

Apreciador de pintura, Kubrick preenchia o plano com suas predileções (vale ressaltar que Vivian é pintora, e ela o auxiliava com sugestões). Cada plano era uma composição inspirada, detalhada em todas as arestas (ora o próprio plano era concebido tal como uma pintura – basta reparar na composição, no detalhamento do todo; ora era preenchido por pinturas que tivessem algo a ver com o que se passava na trama – esse texto aponta e traça paralelos no filme com referências ao movimento pré-rafaelita). Nos filmes do Expressionismo Alemão, por exemplo, movimento surgido da pintura, a mente do personagem modificava o espaço externo: o exterior tornando-se reflexo do interior. Apresenta-se em tal modificação uma deformidade: nela se faz presente o exagero, um exagero que reflete o horrendo (vide O Gabinete do Dr. Caligari, Nosferatu). Já em Kubrick o horrendo é evidenciado pelo rigor técnico, estabelecido pelo diretor-ditador que, ao não querer que o quadro se “rebele”, com seu “regime” tudo sufoca. Kubrick, por causa de seu controle extremado, cria o horrendo, o terror através de uma estética limpa, asséptica, perfeccionista. “Sufocado” pelo regime kubrickiano é seu próprio filme – e a existência de cada quadro seria um ato de rebeldia, desejoso em mostrar o “fundo” de algo proibido.

Tal “repressão” não é negativa. O horrendo não se externaliza: é sufocado, e se afigura pior do que se fosse externalizado. Cada plano é dotado de incontáveis significações. São códigos cifrados para o grito de socorro. Denunciam o “déspota” Kubrick. Seu olho fotográfico a tudo observa – nada escapa dele. Para o diretor, é desnecessário deformar, pois a modificação já é feita através do perfeccionismo irredutível presente no quadro composto. E nada escapa à composição, até mesmo aquilo que seria impossível de registrar, porque imaterial: o mental.

Kubrick, em De Olhos Bem Fechados, faz coexistir o literal e o psicológico – ou exterior e interior, respectivamente. Tal coexistência é tão bem organizada que quase nenhuma perturbação se manifesta. Uma forma de afrouxar o “regime”, é criando ambientes oníricos (o Sonata Café, a Nova York artificial), personagens ambíguos (Sr. Millich e sua suposta filha, da loja de fantasias), gestos que a todo tempo percorrem entre a seriedade e o jocoso (durante a conversa final entre Bill e Ziegler, seu clima austero é contrastado por tacos e bolas de sinuca que sugerem símbolos fálicos sutilmente cômicos). Dessa forma o “proibido” pode aparecer sem ficar tanto em evidência. 

O binômio citado acima (exteriorinterior) significa, respectivamente, outro binômio: permitidoproibido. De Olhos Bem Fechados o segue à risca. Seu mundo é o mundo que se abre quando se faz presente a libido (desejo sexual); e tal mundo é perigoso, pois revela algo que é sempre reprimido. Todos que interagem com Bill e Alice têm segundas intenções. Os olhares são sempre luxuriosos. A linguagem corporal é inquieta. A tensão sexual domina a atmosfera. Ainda assim as interações são codificadas (vide a cena na qual o concierge do hotel (Alan Cumming) interage com Bill, cena esta dominada por códigos sexuais). 

Possuidor de uma implícita divisão narrativa, o filme divide-se em antes e depois da festa orgíaca. Tudo o que a antecede cheira à cilada. Os ambientes possuem um quê de reluzente (a cintilante e evocativa bola de cristal no momento em que Bill senta-se à mesa do Sonata Café). As luzes natalinas ainda representam esperança, certo otimismo (ou inocência?), não convite às tentações que brilham como pisca-pisca para a carne. Ainda não fomos apresentados ao mundo das armadilhas proveniente dos desejos – apenas aos desejos. Tudo ainda é sugestivo, inofensivo. Nesse sentido, o antes é um convite maldoso, é a arapuca disfarçada de misteriosa solenidade (o nome “Fidelio”, ópera de Beethoven, sendo utilizado como senha de acesso para um bacanal da alta classe).

Eis o depois: os desejos expostos. O colapso: desmorona a parede limítrofe que separa o consciente do inconsciente, que delimita o que é livre e o que é reprimido (deixa de existir qualquer binômio). O que sucede o bacanal é o “desmascarar” dos desejos de Bill, o fim do arco-íris que é mais emboscada do que recompensa. É o desejo encontrando a vergonha (sua máscara é retirada na frente de todos, sua identidade é exposta). É o sexo indo de encontro com a morte. A atmosfera geral é falseada: a epiderme onírica do sonho invade o mundo desperto (o pesadelo de Alice correspondendo à experiência real do marido). Todos que interagem com Bill parecem saber o que tem na sua mente; ou melhor: o que se passa externamente é o que se passa na sua mente entupida de desejos e medos. Momento que condensa toda a ambição de Kubrick é o momento no qual a máscara que Bill usou na festa aparece ao lado de Alice, que dorme. Ele chora, acorda a esposa com o choro, e resolve contá-la a história inteira: eis a culpa, outro tema caro ao diretor, com a máscara pousada solenemente no travesseiro sendo o auge simbólico do longa.

Produtor e cunhado de Kubrick, Jan Harlan disse que “a cena da orgia é um inferno moderno, não uma orgia. Não é uma cena erótica, e de propósito, porque a pornografia não é erótica. O erotismo requer amor, e aquilo era só repulsivo – não as garotas, os homens“. Ocorre, na sequência citada, o embaralhar das identidades, a confusão que é fruto dos desejos mais profundos do inconsciente (masculino). Paira toda uma confusão identitária: mulheres por todo canto se parecendo umas com as outras, com a maioria delas sendo esbelta e alta, só se distinguindo mesmo pela cor dos cabelos. Reparamos em cada detalhe para detectar afinidades, à procura de alguém familiar (Mandy, a moça que morre de overdose? Domino, a prostituta? Ou Alice, sua esposa?). 

Desse esforço é desnecessário achar qualquer miudeza: a própria procura em reestabelecer padrões e equivalências é o objetivo em si. E o que mais se parece com esta confusão geral, com esse embaralhamento? O onírico. Tudo se encaminha para este fim: desvendar a lógica do sonho, abrir olhos “bem fechados”. Kubrick recria o clima escorregadio do sonho e seu efeito após o despertar. Estabelece o elo entre o consciente e o inconsciente. Tematicamente, De Olhos Bem Fechados é um filme sobre a vida conjugal. Mas, se formos além, notamos que é sobre algo mais denso: é a realização imagética da luta entre o consciente e o inconsciente, com a representação do matrimônio sendo o terreno mais apropriado para se retratar tal embate.

Seria Bill um voyeur? Ou melhor, seríamos nós os voyeurs da sua mente, cientes do turbilhão de pensamentos que nela rondam? E quanto ao primeiro plano do filme, ainda durante os créditos, mostrando Nicole Kidman se despindo: seria o desejo olhando pelo buraco da fechadura o objeto desejado? Exemplo de voyeurismo mental, puxando dos confins do cérebro pulsões sexuais? Nesse sentido, a fala final de Kidman (“Foder”) é uma resposta àquele plano de abertura: é a chave daquela fechadura. Em De Olhos Bem Fechados Kubrick bisbilhotou o inconsciente do início ao fim da projeção.

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